Faz mal uma palmadinha? José Ribamar Bessa Freire
No apagar das luzes de
2011, a Câmara dos Deputados aprovou a Lei da Palmada, que proíbe os pais ou
responsáveis de aplicarem castigos físicos nos filhos, o que vai alterar o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O assunto, muito polêmico, tomou
conta da mídia e das redes sociais. Discutiu-se a interferência do Estado no
espaço familiar. Na ocasião, pensei até em dar também os meus pitacos sobre o
uso de castigos corporais no processo educativo, mas decidi esperar que a poeira
baixasse.
A poeira está baixando.
A mãe desse locutor que vos fala usou, na educação dos seus
treze filhos, a surra, o que não constitui um exemplo a seguir, embora não tenha
deixado - creio - sequelas e traumas. Um amigo meu, americano,
economista, ficou horrorizado quando eu lhe contei que, por ser danado e
briguento, peguei muita porrada em casa. Depois que conheceu minha mãe, ele
filosofou, generalizando talvez apressadamente:
- Mãe brasileira pode
dar palmada, porque esse não é o único contacto físico que tem com os filhos,
ela dá também carinho, o que não é o caso da mãe americana”.
Acho que podia ser interessante a gente se perguntar de onde
surgiu essa ideia de que é recomendável a punição física contra as crianças para
ensinar e para corrigir a desobediência e o mau comportamento. Não veio dos índios e dos africanos, mas dos europeus, que
professavam a “paudagogia” como mostra a documentação histórica produzida pelos
primeiros jesuítas, para quem era impossível educar, sem punir severamente o
erro. Isso gerou conflito entre os índios que pensavam
diferentemente.
Os
índios jamais castigavam, eram contra a porrada e construíram um discurso sobre
isso. No século XVI, o princípio pedagógico indígena mais criticado foi
justamente aquele detectado pelo jesuíta, Fernão Cardim, quando ele, surpreso,
constatou que “os índios amam os filhos extraordinariamente”, mas
lamentou porque “nenhum gênero de castigo têm para os filhos, nem há pai nem mãe
que em toda a vida castigue nem toque em filho”.
Outros cronistas
confirmaram comportamento similar em diferentes aldeias Tupinambá do litoral,
como ocorreu com Pero de Magalhães Gandavo, provedor da Fazenda na Bahia, em
1565, para quem os índios “criam seus filhos viciosamente,
sem nenhuma maneira de castigo”.
Esse tipo de relação,
na qual as crianças são socializadas sem repressão, é observável ainda hoje, no
século XXI, nas seis aldeias Guarani do Rio de Janeiro, localizadas em Angra dos
Reis, Parati e Niterói, com as quais tenho contato há mais de vinte anos. Nos
cursos que ministro para formação de professores bilíngues, vejo as mães
indígenas cochichando com seus filhos, tratando tudo na conversa. O
comportamento atual dos Guarani pode ser resumido no depoimento de uma jovem
guarani mbyá, mãe de três filhos: “Mbyá puro não bate na
criança. Nunca. Não precisa bater nem brigar, só falar” .
No
entanto, a pedagogia européia da época, acostumada com o uso da palmatória e com
outras formas de violência física, considerou a ausência de castigo como uma
“omissão”’, um “atraso”, um “vício”, porque não corrigia o erro e, por isso,
obstruía o processo de aprendizagem. Aos olhos do colonizador, tratava-se
de negligência e falta de princípios pedagógicos, e não do resultado de uma
reflexão coletiva sobre a natureza do processo de aprendizagem.
Durante todo o período
colonial, os índios foram submetidos a um choque cultural, produzido pelo embate
entre práticas econcepções pedagógicas bastante diferenciadas. De um lado, os
princípios de uma sociedade, cuja educação não dependia da escola, da escrita e
de castigos físicos. De outro, as normas e regras de uma sociedade letrada,
dependente da escola e da palmatória que – acreditava-se – corrigia erros e,
portanto, educava. Esse choque ocorreu em diferentes regiões do país, com
consequências trágicas para os índios e suas culturas.
Um missionário jesuíta,
João Daniel, testemunhou no século XVIII a resistência das índias do Pará, que
teimavam em usar, de forma exclusiva, sua língua materna, recusando-se a migrar
para qualquer outra língua. O padre, responsável pela escola, mandou dar-lhes
“palmatoadas”, para que mudassem de comportamento, mas elas “antes se deixavam
dar até lhes inchar as mãos e arrebentar o sangue”.
Gandavo registrou que
quando as crianças eram punidas na escola, os pais ficavam irritados, “se
melindravam e ressentiam”. Por isso, o índice de evasão escolar era altíssimo,
conforme observou um superior jesuíta do século XVI, Luiz da Grã, para quem os
castigos esvaziavam as escolas, pois “só o ver dar uma palmatoada a um dos
mamelucos basta para fugirem”.
Desde os primeiros
momentos, e ao longo de todo o período colonial, a documentação registra fugas
constantes e frequentes de índios, que eram aprisionados, amarrados e forçados a
voltar para a escola, como sinaliza a carta de Pero Correia, de 1554: “Y quando
alguno es perezoso y no quiere venir a la escuela, el hermano lo manda buscar
por los otros, los quales lo traen preso…”.
Nos dias atuais, a
proposta dos índios contra castigos físicos aplicados às crianças é vista com
simpatia, e parece ser universalmente aceita por todas as correntes de
pensamento dentro da pedagogia. Mas ninguém procurou os índios para reconhecer
que eles estavam mais avançados e dizer-lhes:
- Desculpem-nos, no
século XVI, quem tinha razão eram vocês e não nós.
Se ninguém pediu
desculpas, então peço eu. Agora.
O professor
José Ribamar Bessa Freire coordena o
Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Escreve no Taqui pra ti.
Fonte: Blog do Amazonas - Altino Machado
Colaboração: Eleonora Ramos, jornalista e coordenadora do Projeto
Proteger – Salvador (BA)
Fonte: Blog Educar Sem Violência - Cida Alves- http://toleranciaecontentamento.blogspot.com/
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