Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes não é prostituição!
Por José Carlos Bimbatte Júnior e Jaqueline Soares Magalhães
Artigo 227 da
Constituição Federal do Brasil: “É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.”[1]
A decisão do Superior
Tribunal de Justiça - STJ, divulgada em 27 de março de 2012, inocentando um
indivíduo que explorou sexualmente três adolescentes de doze anos,
envergonha-nos, causa náuseas. Embora não seja a única, pois recentemente temos
assistido a muitas notícias vindas da justiça brasileira que nos causam profundo
mal estar, exige reflexão e ponderação sobre os fatores imbricados na
questão.
Chegar ao ponto de
“assassinar” de uma vez só a Constituição Federal , o Estatuto da Criança e
Adolescente e todos os acordos e convenções internacionais assinados pelo Brasil
é no mínimo uma afronta à sociedade brasileira, nosso “fundo do poço”.
A decisão do STJ é
emblemática, por jogar luz sobre e reverberar uma problemática bem mais
complexa, histórica, sócio econômica e cultural, denunciando a forma a lupa com
que nossa sociedade continua a olhar e entender a infância e a
adolescência.
As sociedades modernas
precisaram de quase quatro séculos para produzir a noção de infância, do século
XVII ao século XXI , para olharmos uma criança hoje e a reconhecermos como uma
pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.
Até o século XVII, tão
logo uma criança nascia e obtinha independência de seu cuidador, de minimamente
“se virar”, esta era inserida nas atividades da Pólis, que incluíam
trabalho e outras atividades similares as dos adultos. Como diz Philippe
Ariès[2], eram vistos como adultos em miniatura,
participando inclusive dos jogos sexuais.
No Brasil, de 1500 até
hoje, foram necessários 500 anos, passarmos por toda forma de violação de
direitos humanos de crianças e adolescentes, para termos uma legislação que
concebesse criança e adolescente como sujeito de direitos. Das naus portuguesas
que trouxeram do outro lado do mundo crianças e adolescentes “órfãos”,
“abandonados” e “delinquentes”, a catequização de povos indígenas, os 300 anos
de escravidão negra, a roda dos “expostos”, o primeiro Código de Menores de 1927
e seu congênere de 1979 (pautados na lógica da situação irregular). Seguimos
ainda por séculos na visão adultocêntrica da sociedade, que colocava crianças e
adolescentes sempre submetidos aos desejos, necessidades, mandos e desmandos dos
adultos, sendo filhos e filhas propriedades de seus pais, e crianças e
adolescentes “abandonados” ou “delinquentes” propriedade do Estado. Até
finalmente chegarmos ao Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto
da Criança e Adolescente, em 1990, quando crianças e adolescentes passam, na
lei, a ser reconhecidos como sujeitos em peculiar estágio de desenvolvimento e
detentores de direitos.
Os avanços conquistados
no campo de legislações, foram fruto de uma grande mobilização e lutas do
conjunto da sociedade brasileira, concomitantemente a outros importantes
movimentos e lutas, que aconteciam no período do anos de “chumbo” e eclodiram
nos anos 80.
Essa longa história
deixou suas marcas, e antigos pressupostos expressam-se em práticas ainda
cotidianas. Observar a história da criança no Brasil, significa entendermos
quais foram os diferentes destinos dados as “infâncias”, sobretudo o destino
dado às crianças e adolescentes pobres, que foram e continuam sendo
sucessivamente violadas.
Este viés da classe
social, o olhar, o tratamento e os destinos dados as crianças pobres no Brasil,
nos dão pistas importantes do porquê da decisão do Superior Tribunal de Justiça.
Se não fossem pobres, será que haveria esta inversão no julgamento? Sim, pois
quem na realidade passou a ser julgado foram as adolescentes. Será que se fossem
meninas de classe média ou alta seriam também tomadas como “ prostitutas” “desde
longa data? Ou seriam tratadas como adolescentes vítimas de exploração sexual?
Tal situação social vem
sendo naturalizada, ou seja, parece ser da ordem da natureza que meninas pobres
sejam exploradas e que a sociedade de uma forma geral considere que isso foi uma
“escolha” e que as coisas são sempre assim mesmo. Trata-se de mais uma vez naturalizar o
que é socialmente construído, para não responsabilizar ninguém além das próprias
adolescentes de sua condição.
Mas o viés sócio
econômico não é o único viés da questão. Além de pobres e adolescentes, são
também mulheres, meninas. As questões de gênero e seu histórico em nossa
sociedade permeiam toda esta situação e estão também refletidas na decisão do
STJ. Não por acaso a história da luta pelos direitos de crianças e adolescentes
se cruza e caminha em paralelo aos movimentos de luta pelos direitos das
mulheres. Foram estes, na verdade, que abriram caminho para as discussões sobre
as violações das demais “minorias”, sendo estas as crianças e os adolescentes,
os negros, os deficientes. O movimento feminista traz em seu bojo a luta para
que mulheres deixem de ser tratadas como objetos à satisfação dos desejos
masculinos. Para que deixem de ser vistas como seres que, uma vez
intelectualmente inferiores, deveriam servir aos homens das mais diferentes
formas, incluindo a sexual. Corpos e afazeres à disposição da satisfação
masculina. O que cabe a mulher, o que cabe ao homem. Embora muito tenha se
transformado, à mulher ainda cabe, muitas vezes, servir o homem sem
questionamento, dispor de seu corpo para o deleite do prazer masculino em
detrimento do seu próprio, e, caso não queira assim ser usada, “dar-se ao
respeito”, uma vez que não cabe ao homem resistir, e sim à mulher negar. Já
dizia o velho ditado “prenda suas cabritas que meu bode está solto!”. Quem
mandou aquelas meninas estarem nas ruas “oferecendo serviços sexuais”?
Na querela da decisão
do STJ está implicada outra questão fundamental , que vai muito além da
discussão de estupro de vulnerável. O que temos de discutir é a situação da
violência em si, que foi a situação de exploração sexual a qual as adolescentes
foram expostas e submetidas pela contratação e pagamento de “serviços sexuais”
por um homem adulto.
Exploração Sexual de
crianças e adolescentes Infantil não é “prostituição”. Desde o Primeiro
Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes, de 1996, em Estocolmo, na Suécia, os países participantes, entre
estes o Brasil, definiram pela não utilização do termo “prostituição infantil”,
passando a definir como exploração sexual a situação em que um ou mais adultos
fazem uso sexual de uma criança ou adolescente, numa relação comercial (que
envolve alguma forma de pagamento). Com isso, explicitava-se que crianças e
adolescentes não optam ou consentem em situações de abuso e exploração sexual,
mas sim que são abusados e explorados sexualmente por adultos, estes em
condições de escolher. Como nos diz Eva Faleiros[3], trata-se de uma ultrapassagem de limites
pelo adulto em diversos âmbitos, dentre estes, limite daquilo que a criança ou
adolescente pode consentir, viver e fazer.
No Brasil, a exploração
sexual de crianças e adolescentes é crime previsto em Lei, sujeito a pena de
reclusão de 4 a 10 anos e multa, conforme o Artigo 244-A do ECA. E, ainda assim,
no mesmo país que possui uma legislação como o ECA e que sediou o 3o
Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescente, temos uma decisão como a do STJ...
A decisão do STJ
“determina” que as meninas continuem onde estão, afinal este é o destino que
lhes cabe – que escolheram, e convida homens adultos a deleitarem-se sem culpa,
afinal de contas, que podem eles diante de tal tentação?
Tudo o que poderíamos
errar já erramos historicamente com relação aos direitos de crianças e
adolescentes brasileiros, não é possível errarmos mais! A sociedade brasileira
espera mais dos atores do Sistema de Garantia de Direitos em relação a proteção
de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, é tímida
e acanhada a nota pública de repúdio do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e Adolescente (CONANDA), divulgada em 29 de março de 2012. Ora,
esperávamos muito mais de um órgão que em suas prerrogativas e atribuições
legais tem a legitimidade para ações efetivas, concretas e mais arrojadas.
Acertada a decisão da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), em acionar
a Advocacia Geral da União (AGU), para ação de reversão da decisão
judicial.
Precisamos mobilizar
todos os atores que direta ou indiretamente atuam em defesa dos direitos da
criança e do adolescente, mobilizar as mídias, a opinião pública para
definitivamente dizermos que não toleramos e não toleraremos violação de
direitos humanos de crianças e adolescentes.
O Brasil irá sediar
dois grandes eventos internacionais, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em
2016, e existe entre nós a preocupação, pertinente, de termos o cuidado com o
fenômeno da exploração sexual contra crianças e adolescentes possivelmente
agravada pelos visitantes estrangeiros. Como iremos conseguir impor nossa Lei se
nem nós a cumprimos?
Se tudo isso não for o
suficiente, devemos recorrer à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à
Organização das Nações Unidas (ONU), considerando a violação de tratados
internacionais ratificados pelo Brasil, como a Declaração Internacional dos
Direitos da Criança, de 1989.
Esperamos que esta
indignação, ainda que de uma minoria da população, seja motor para ações
efetivas de proteção e para novas discussões, que sejam ampliadas e
amplificadas, esclarecendo a população sobre os direitos de crianças e
adolescentes, as consequências de sua violação e a responsabilidade dessa mesma
população em garantir que estes sejam efetivados e respeitados.
José Carlos Bimbatte
Júnior
Psicólogo, consultor e
educador, associado fundador da Associação dos Pesquisadores de Núcleos de
Pesquisa Sobre a Criança e adolescente( NECA) trabalha há mais de 20 anos no
desenvolvimento de programas e projetos sociais especialmente na área de
direitos humanos de crianças e adolescentes em organizações não governamentais
nacionais e internacionais, estados, municípios e empresas.
Jaqueline Soares
Magalhães
Psicóloga, Mestre em
Psicologia pela Universidade de São Paulo, Educadora, Consultora em projetos
sociais, Professora Universitária.
[1] Constituição da República Federativa do
Brasil, 1988.
[2] ARIÈS, Philippe. História Social da Infância
e da Família. Rio de Janeiro, LTC – 1981.
[3] FALEIROS, Eva. Repensando os conceitos de
violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. CECRIA,
MJ-SEDH-DCA, FBB, UNICEF. Brasília, 2000. Disponível em:
http://www.mpes.gov.br/anexos/centros_apoio/arquivos/17_21021134241952009_Repensando%20os%20conceitos...%20Faleiros.pdf
Fonte: Blog Educar Sem Violência. Cida Alvas. Goiânia.2o12. Disponível em:http://toleranciaecontentamento.blogspot.com.br/.
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