5 de jan. de 2013

As vozes que pedem eco




"Dissestes que se tua voz tivesse força igual à imensa dor que sentes, 
teu grito acordaria não só a tua casa, mais a vizinhança inteira".

Há tempos - Legião Urbana


De todas as crianças e adolescentes que atendi, guardei fragmentos de esperança e beleza. Com seus olhos compridos em direção aos brinquedos da sala de terapia, elas perguntavam meio que num rasgo de liberdade:

_ “Posso brincar”?
_ “Posso gritar, mas gritar bem alto aqui na sala”?
_ “Não preciso falar daquilo agora, ou preciso”?

Na vontade expressa de brincar, de sonhar, de poder ir até o limite de sua voz, sem coerção; e no desejo de não falar, sempre, de sua ferida, um importante aprendizado ficou! Essas pequenas criaturas me conduziram como terapeuta a um caminho “sagrado”: o da infância. Nesse caminho percebi que a alegria, o prazer e o encantamento seriam potentes bálsamos para a dor. Mas percebi também, que teria que suportar, sem panos quentes, a visão, o cheiro e a cor da ferida. Teria que atravessar descalça o deserto de seus dramas.

No entanto, ao viajar pelos territórios inóspitos da criança sempre encontrava oásis de riqueza e força emocional. Nesses momentos, ficava com a sensação de que mais importante do que me levar ao reconhecimento das suas dores e aridez, as crianças queriam me mostrar o tamanho de sua força e também as vicissitudes que existiam em suas vidas. Elas lutavam para não falar só do abuso ou da violência sofrida, pois queriam que sua identidade e o seu relacionamento comigo não fosse construído somente com que estava desestruturado na sua vida e na de seus familiares. Elas queriam que as vissem “inteiras e não pela metade” (trecho da música comida da banda de rock Titãs). Lutavam como bravas por sua identidade e valorização.

No tumulto de suas pequenas vidas, sempre me surpreendia com seus ímpetos de saúde e crescimento. E como as crianças, às vezes, eu também devaneava. Tornava tudo exato, simples e dizia para mim mesma:

_ “Bem, a terapia está indo legal. Agora é só questão de tempo e paz. Logo suas feridas serão cicatrizadas”.

Como é doce a fantasia! Mas a realidade não se apresentava tão simples assim. A terapia era abandonada, os responsáveis se mudavam para longe. Disputas judiciais tencionavam a mãe, que logo se afastava alegando falta de condições para o transporte. Mães que não compareciam, pais, padrastos e tios que nunca, nunca eram encontrados. Depois de uma boa dose de realidade, o óbvio se apresentava com toda a sua dureza peculiar. Não era só da criança e de mim que o rumo de sua vida dependia.

Da mesma forma que as crianças foram impelidas a uma relação abusiva, pelos desejos e afetos inadequados do mundo adulto, dependerá deste mesmo mundo o resgate de sua infância e integridade.

Cabe, então, a todos nós adulto – sejamos pais, psicólogos, médicos, advogados, conselheiros, jornalista etc. – uma fração de desejo e de afeto que nos movimente num sentido de proteger e cuidar da infância. Não podemos permitir que “só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção” (Há tempos - Legião Urbana). Precisamos nos comprometer com o significado que a violência vai assumir na vida da criança. Precisamos interromper o ciclo da violência, prevenindo novos abusos.

Todas as crianças que atendi deixaram fortes marcas em mim. Com suas dissonantes vozes me fizeram um pedido:

_ Escute-me sem julgamentos;
_ Não me vejam aos pedaços;
_ Não roube de mim o resto da minha infância, da minha vida e do que sobrou de minha família;
_ Suportem o meu estridente grito;
_ Dê-me eco, voz;

Para que esses pedidos possam ser atendidos, precisamos nos afastar da idéia individualista de auto-suficiência profissional e nos aproximar da idéia de co-responsabilidade e co-dependência institucional. Um fenômeno tão complexo como o abuso sexual, seja ele praticado por familiares, conhecidos ou estranhos – não tem uma solução rápida e isolada. Uma intervenção com ações integradas entre vários segmentos sociais (educação, assistência social, saúde, conselhos tutelares, delegacias e juizados especiais, promotorias e organizações não governamentais) é fundamental.

Só uma rede de cuidado e proteção – de nós firmes e de fios flexíveis – garantirá uma real competência às instituições que tem como tarefa proteger e cuidar de crianças, adolescentes e mulheres que sofrem alguma forma de violência.

A proteção tem que ser integral, tem que envolver os familiares e a comunidade. Temos, assim, que assistir os familiares que estão envolvidos direta ou indiretamente, nos crimes sexuais. Eles também precisam de apoio e orientação.

A indignação diante da violência, que é extremante saudável para as crianças e também para a sociedade em geral, não pode se confundida com a parcialidade burra, que ofusca a complexidade da relação abusiva de caráter sexual. Nem tampouco a justiça e a responsabilização, que são essenciais no processo de enfrentamento da violência, ser confundida com um mero movimento de revide ou de vingança.


Cida Alves, psicóloga com formação em psicodrama terapêutico e em terapia de família e casal, especialista em atendimentos de pessoas em situação de violência, mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação/UFG.

Fonte: Blog Educar sem Violência. Cida Alves. Acesso em: 05 jan. 2013.


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